No mundo capitalista, histórias de gente que precisou abandonar o sonho de ser músico para investir numa profissão financeiramente mais viável como a de advogado, por exemplo, são a tônica. No bate-papo a seguir, com o professor Eduardo Lucas - 23 anos, responsável pelo projeto banda de música dentro do Canto na Escola – vamos descobrir que, com dedicação e talento, a exceção à regra pode muito bem encontrar um sonoro acorde alternativo e com sopro e com vontade botar a banda pra tocar...
ITC: Você nasceu em Vitória mesmo?
Eduardo: Eu nasci em um bairro periférico daqui chamado São Pedro, São Pedro V ou Nova Palestina na verdade, porque São Pedro mesmo é só a região. Inclusive, São Pedro ficou conhecido no mundo todo como o pior lugar do mundo que tinha para se sobreviver. Não sei se você sabe, mas lá era um lixão.
ITC: Teve um filme que o jornalista Amylton de Almeida fez lá, chamado Lugar de Toda Pobreza (1983).
Eduardo: Sim, um documentário. Foi divulgado no mundo todo e as pessoas não acreditavam que existia tanta pobreza no Brasil, sabiam da África e tudo, mas não imaginavam isso acontecendo aqui. Aí teve a visita do Papa (João Paulo II, em 1991) que teve relação com esse vídeo, na época ele esteve lá em São Pedro, aí eles asfaltaram o bairro, porque era tudo lama e como o Papa ia lá ele tinha o costume de beijar o chão e já beijar a lama não tem como... Ele doou uma verba, acho que foi um anel, para construir a escola (municipal) que eu estudei que se chama (EMEF) Neusa Nunes Gonçalves, tem até um crucifixo numa pedra lá lembrando...
A Biblioteca da Escola tem um blog com várias informações complementares como fotos da cruz do papa (abaixo):
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http://emefnng-bibliotecafontedosaber.blogspot.com.br |
ITC: Nessa época você já gostava de música?
Eduardo: Não, nunca tive contato com música, eu sou o único músico da família, mas eu tinha um vizinho que tocava trombone e eu achava legal e na igreja (Assembléia de Deus) eu tinha um colega que tocava sax. Foi esse amigo que me pediu para estudar algum instrumento para ajudar na igreja, mas na época era muito precário, não tinha professor e nem tinha grana pra pagar. Aí me indicaram um projeto que estava no início que era o Banda Junior da Polícia Militar, até patrocinado pela ArcelorMittal Tubarão, antiga CST. Meu pai é militar e eu fui lá e me inscrevi, consegui uma vaga e comecei a estudar música com quinze anos. Foi muito diferente porque não era o que eu queria pra mim: meu pai é militar, meu avô era, minha família tem muito militar e o caminho a seguir era esse.
ITC: Mas dentro da corporação tem um monte de músicos, seu pai poderia, se ele quisesse, tocar alguma coisa.
Eduardo: Mas meu pai aprovou a minha ida para estudar música justamente porque foi dentro da corporação e tem a banda de música da polícia. Por que se fosse algo que não existisse lá dentro, talvez ele não visse com bons olhos, entendeu? Aí ele me ajudou, comprou o meu primeiro trompete e eu comecei a estudar no projeto Banda Junior. Na época tinha essa questão de módulos, então eu estudei um ano inteiro de teoria pra só depois pegar no instrumento. Essa foi uma coisa que desanimou, na minha turma tinha uns trinta alunos e muita gente desistiu. Da minha época, que eu lembro, acho que eu fui o único que resistiu até o final. Eu queria tocar sax e como sempre fui muito gordinho, falaram pra eu tocar tuba, daí falei que não porque não ia ter dinheiro pra depois comprar o instrumento. E sax não tinha, porque todo mundo queria, foi quando me apresentaram o trompete lá na banda.
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A Banda Junior em ação. Foto: Assessoria de Comunicação PMES |
ITC: E quando foi que você falou “gostei desse negócio, vou tocar mesmo”?
Eduardo: O meu sonho era seguir a área de direito, sempre li muito sobre isso, meu pai tinha uns livros de direito em casa por causa do militarismo e tinha feito ciências políticas também. Com quinze anos eu já tinha lido a constituição inteira, eu não entendia bulufas de nada, mas gostava daquilo. Só que quando chegou o momento eu optei pela música, porque comecei a sentir paixão, aquilo foi me atraindo cada vez mais e resolvi seguir meio que com o pé atrás, porque não tenho nenhum referencial de músico na minha família, uma pessoa que deu certo. É como você se jogar no mar sem uma bóia, não sei o que vai dar, mas vamos nos aventurar. Então prestei vestibular pra Fames pro curso de formação musical e até deixei um pouco o ensino secular de lado porque fiquei tão apaixonado pelo trompete que não queria estudar outra coisa. Na época eu pensava que a escola não ia me ajudar em nada, então pra quê estudar português e matemática? E isso foi um grande engano, hoje ainda sofro por conta de não ter levado os estudos a sério. Pra eu poder me formar e fazer o curso superior em música me deu muito trabalho.
ITC: Quando você era pequeno que tipo de música você ouvia na sua comunidade?
Eduardo: Meu pai sempre foi muito festeiro e tinha um bailão lá (em São Pedro) chamado “Sonho Doce” e rolava muito forró, na época tinha aquele negócio de discoteca e rolava também um funk, tinha baile funk e pagode. Então eu tinha esse contato bem supérfluo, não era um contato profundo com a música.
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Eduardo (no meio) com alunos em Feu Rosa, Serra-ES |
ITC: Quando começou a estudar você viu um outro universo de música que você nem imaginava, não é? Você nunca tinha ouvido música erudita em casa?
Eduardo: Nunca. E foi um baque bem grande, porque música erudita era só aquela que eu via em trailer de filme. Fora isso não tive contato com nomes tipo “Beethoven”, para mim era muito difícil até mesmo pronunciar. Na banda de música é que tive contato com Guerra Peixe, os compositores brasileiros, Villa-Lobos, Carlos Gomes, comecei a aprender esses nomes e ver um outro lado da música dita “erudita”. No princípio eu queria tocar, independente do que fosse, depois de certo período é que eu comecei a sentir prazer de estudar essa música. Às vezes a gente não dá muito valor a música erudita porque não sabe o quanto é difícil fazer essa música.
ITC: E como a sua família viu essa mudança?
Eduardo: Minha mãe gostou porque eu comecei a tocar na igreja e outra coisa é o meu bairro, né? Por ser um bairro periférico você tem diversas mazelas como drogas, envolvimento com coisas erradas e com a minha atividade da música, que é uma coisa boa, evitou de eu ter contato com essas coisas, me ajudou bastante. Tive amigos que traficavam drogas, perdi muitos amigos por conta do crime e da violência. Talvez porque não tiveram a mesma oportunidade que eu tive.
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Eduardo com a banda de percussão em Novo Horizonte, Serra-ES |
ITC: Quando você começou a dar aulas no Canto na Escola foi a primeira vez que você lecionou?
Eduardo: Eu já tinha montado uma oficina de música na igreja, trabalhei na Escola Aberta, dei aula de teoria musical e flauta doce, dava aulas particulares de trompete em casa. Depois de um certo tempo na Fames eu participei de um processo seletivo do Projeto Bandas nas Escolas Estaduais e fui aprovado para dar aulas na Serra Sede, para trabalhar com banda dando aulas de trompete, trombone e bombardino. Depois, no ano seguinte, nesse mesmo projeto trabalhei em Vitória no Colégio Estadual, sob orientação de um professor. Em 2011 eu ingressei no Canto na Escola que foi quando eu comecei a atuar profissionalmente, com carteira assinada e tudo mais.
ITC: Você usa música popular para despertar o interesse dos alunos para a teoria?
Eduardo: Eu sofri para aprender a teoria e isso é importante no ensino, porque você sabe que aquilo é doloroso, que é difícil, então você entende a dificuldade do aluno. Desde que comecei a dar aula eu já tinha intenção de usar a teoria musical concomitantemente com o ensino do instrumento, porque é algo mais atrativo para o aluno, faz com que ele se envolva mais com a música. O menino aprende a ler a partitura, mas aprende também uma musiquinha no instrumento e quando chegar em casa vai falar: “pô mãe, já aprendi essa musiquinha”.
ITC: Como é que você vê o desenvolvimento de seus alunos? O trabalho de Banda dá resultado rápido, não é Eduardo? Ou não?
Eduardo: Depende muito do instrumento, com os instrumentos de sopro é mais demorado, já os de percussão é um pouco mais fácil, porque criança tem aquela fase de querer sair batendo em tudo, até panela, é um pouco mais fácil lidar com essa questão motora. Já o ensino do instrumento é uma coisa mais cognitiva, a criança tem que pensar: “eu tenho que assoprar, eu tenho que fazer o lábio vibrar, tenho que fazer a paleta vibrar”. Então demora um pouco mais.
ITC: E você vê potencial de talentos na sua turma?
Eduardo: Tem diversas crianças que eu vejo que tem talento e aptidão inatas, acho até que dizer “inata” é muita pretensão também, mas que têm uma certa aptidão pro negócio, mas eu tento não ver aquilo como um investimento individual, “vou investir nessa criança porque ela vai ser um grande músico”. Nosso intuito é oferecer uma educação musical de qualidade para as crianças, agora se no futuro elas vão seguir na música não é o foco, nosso objetivo é aliar o ensino com noções de cidadania, promover a inter-relação entre elas, dos princípios, essas coisas todas.
ITC: Nem todo mundo que tem que estudar matemática vai ser um grande matemático, não é? Talvez seja a mesma coisa com a música, são caminhos ensinados, trilhar é outra história. É como você que não conhecia o repertório de música clássica, certamente seus alunos também nunca tiveram...
Eduardo: Pra eles é uma coisa muito nova, eu uso uma estratégia que tem dado certo, de trazer a música erudita associada à música popular. Não dá pra chegar em toda aula e colocar a nona de Beethoven pras crianças escutarem do nada. A idéia é tentar trazer de uma maneira mais divertida, eu estava ensinado células rítmicas através de música popular - colcheias, semi-colcheias – utilizando a Lady Gaga, Michel Teló, essas musicas populares. Um dia resolvi levar a quinta sinfonia de Beethoven, pensando que os meninos fossem me bater porque nunca tinham ouvido. Aí fiz uma brincadeira com eles de fazer movimentos associados às células rítmicas e melódicas da música, o sentimento que despertasse nelas teria que gerar um movimento. Esse exercício me surpreendeu muito, porque daí pra frente todas as aulas elas queriam ouvir a mesma música. Imagina, uma criança que só escuta “tchá-tchá-tchú” querendo ouvir a quinta de Beethoven? É um salto enorme e isso tem trazido um resultado muito bom.